Juan Gelman

Chuva


Hoje chove muito, muito,

e parece que estão lavando o mundo.

meu vizinho do lado contempla a chuva

e pensa em escrever uma carta de amor

uma carta à mulher que vive com ele

e cozinha para ele e lava a roupa para ele e faz amor com ele

e parece sua sombra

meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher

entra em casa pela janela e não pela porta

por uma porta se entra em muitos lugares

no trabalho, no quartel, no cárcere, em todos os edifícios do mundo

mas não no mundo

nem numa mulher

nem na alma

quer dizer

nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim

como hoje

que chove muito

e me custa escrever a palavra amor

porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa

e somente a alma sabe onde os dois se encontram

e quando

e como

mas o que pode a alma explicar?

por isso meu vizinho tem tormentas na boca

palavras que naufragam

palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem

na mesma noite em que amou

e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá

como o silêncio que há entre duas rosas

ou como eu

que escrevo palavras para voltar

ao meu vizinho que contempla a chuva

à chuva

ao meu coração desterrado

¨



Juan Gelman

É uma das principais vozes da poesia latino-americana. Nasceu em Buenos Aires, em 1930, e publicou mais de 20 livros. Recebeu os prêmios Nacional de Literatura (Argentina, 1997), Juan Rulfo (2000) e José Lezama Lima (2003).